Crônicas

1º. Lugar em Crônica - Prêmio Mario Sergio Cortella

 Concurso Literário da 16ª. Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto - 2016

Drummond em Copacabana (foto: Blog Estrela Binária)


Tema: 
"A beleza não está nem na luz da manhã, nem na sombra da noite, está no crepúsculo, nesse meio tom, nessa incerteza."
Lygia Fagundes Telles


 A transposição das pedras

Sentei bem pertinho do poeta, no banco de concreto, frente ao mar.
Um estranho contentamento me tomou. Ofereci a ele o meu melhor sorriso. Ele me correspondeu com o reflexo do sol em seu olhar por trás dos óculos empoeirados.
Titubeei na etiqueta. Não sabia se deveria me dirigir a ele como Carlos, afinal eu o conhecia desde o meu primeiro livro de literatura. Melhor seria ser mais respeitosa, decidi usar Sr. Drummond. Pousei minha mão sobre a dele, num contrassenso com a formalidade escolhida.
- Como devo transpor as pedras do caminho? Como ver a beleza além do excesso de luz ou das sombras dos que me acompanham na caminhada? – perguntei.
Seu semblante permaneceu imóvel, perpetuado num invólucro de bronze.   
- Como poderia me responder?
De costas para o mar, o poeta não viu o espetáculo que o sol apresentava ao tingir o céu de tons de fogo, até sua última reverência antes do mergulho no horizonte, cedendo assim o palco para que a noite se fizesse estrelada. Nos meios tons do crepúsculo, as incertezas são inspiradoras.
A resposta às minhas dúvidas estaria na própria vida de Drummond, servidor público, modesto e recatado, mas que deixou um trabalho que é um dos mais importantes da literatura brasileira e que continuará influenciando as novas gerações, fazendo com que permaneça vivo muito além de seu tempo.
Conclui que a beleza não está na luz que ofusca quem também quer iluminar nem na sombra provocada por quem quer se agigantar.
A beleza está no legado que cada um vai deixar.




 TRAÇÃO HUMANA      
                                                   
Crônica selecionada para antologia no Prêmio SESC de Literatura: Crônicas Rubem Braga –
Brasília/DF – 2013.

Sábado, 8h de uma manhã de inverno. Dirigia devagar sem familiaridade com as ruas daquele bairro distante. Numa colina logo à frente reduzi a velocidade ao ver uma carroça de duas rodas amontoada com toda sorte de materiais recicláveis, reaproveitáveis ou nem tanto. Pilhas de papelão, teclados de computador, monitores antigos, embalagens plásticas, vidros e até uma cadeira de três pés.

A carroça vencia a subida metro a metro penosamente e não havia espaço para ultrapassagem. Atrás de mim o motorista de um carro de luxo começou a buzinar incessantemente. Pelo retrovisor observei que fazia gestos obscenos e depois começou a bater ensandecido com as duas mãos no volante num acesso de fúria.

Tentou por duas vezes me ultrapassar de maneira perigosa, mas acabou demovido do intento pelo fluxo de carros em sentido contrário.

Sem pressa e somente quando tive segurança, ultrapassei a carroça. Observei o homem que a arrastava: idoso, com longa barba branca, vestindo uma roupa surrada e descalço. Confesso que se tal carga fosse conduzida por um cavalo, já me traria comoção pelos maus-tratos ao animal, mas era muito pior. Uma carroça de despojos de toda sorte conduzida por tração humana, na verdade tração desumana.

Assim que terminei a ultrapassagem, o carro de luxo já passou por mim e mais uma vez acionou a buzina registrando o seu protesto por ter sido retido em seu trajeto.

Trocamos olhares durante os segundos em que nossos carros ficaram emparelhados. Tinha o semblante enfurecido e balbuciou um xingamento na minha direção, daqueles fáceis de entender por leitura labial. Seguiu o homem do carro de luxo cantando pneus, indiferente ao padecimento alheio.

Observei mais uma vez o carroceiro. Um pobre coitado que carregava o peso do descaso de uma sociedade desigual. Um homem sem chances, sem dignidade, em estado de miséria, cuja visibilidade passa a existir somente no momento em que atrapalha o fluxo de trânsito.

Acabei por me sentir mal em também passar por aquele homem sem dar-lhe nenhum conforto além de uma solidariedade em pensamento, que de nada lhe adiantaria.

As pessoas estão preocupadas apenas com a própria vida, no máximo com a própria genética, cuidando dos seus familiares sem se imaginarem como componentes de uma família única e universal de seres humanos com as mesmas necessidades e os mesmos anseios.

A indiferença precisa ser combatida. Olhar o outro como o próximo, espalhar atitudes fraternas, atenuar fronteiras, não separar as pessoas por crenças, opções ou religiões é o caminho que leva ao bem comum.

No meu trajeto naquela manhã fria, sonhei com um mundo de mãos justapostas, iguais e diferentes, calejadas, bem tratadas, coloridas, antigas, recém-nascidas, mas que fossem mãos enlaçadas, engajadas na busca de um novo tempo de trabalhos dignos, pés calçados e sofrimentos apaziguados.


Eliana Ruiz Jimenez

2 comentários:

elisa disse...

Querida amiga escritora,
Palmas para você, já me lembrei de ter comentado uma crônica que tinha lido no jornal... Mais o menos tratava do mesmo assunto seu, foi publicada na cu una do leitor.
Você colocou mesmo do dedo na chaga da moderna sociedade cl sumiste e nada altruísta... Infelizmente!
Parabéns! Prêmio merecido desejo muito sucesso!
Elisa Alderani

elisa disse...

Querida amiga escritora,
Palmas para você, já me lembrei de ter comentado uma crônica que tinha lido no jornal... Mais o menos tratava do mesmo assunto seu, foi publicada na cu una do leitor.
Você colocou mesmo do dedo na chaga da moderna sociedade cl sumiste e nada altruísta... Infelizmente!
Parabéns! Prêmio merecido desejo muito sucesso!
Elisa Alderani